58.
O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão
própria, e essa expressão vem-lhe de fora. Cada coisa é a intersecção de três
linhas, e essas três linhas formam essa coisa: uma quantidade de matéria, o
modo como interpretamos, e o ambiente em que está. Esta mesa, a que estou
escrevendo, é um pedaço de madeira, é uma mesa, e é um móvel entre outros aqui
neste quarto. A minha impressão desta mesa, se a quiser transcrever, terá que
ser composta das noções de que ela é de madeira, de que eu chamo àquilo uma
mesa e lhe atribuo certos usos e fins, e de que nela se reflectem, nela se
inserem, e a transformam, os objectos em cuja justaposição ela tem alma
externa, o que lhe está posto em cima. E a própria cor que lhe foi dada, o
desbotamento dessa cor, as nódoas e partidos que tem - tudo isso, repare-se,
lhe veio de fora, e é isso que, mais que a sua essência de madeira, lhe dá a
alma. E o íntimo dessa alma, que é o ser mesa, também lhe foi dado de fora, que
é a personalidade.
Acho, pois, que não há erro humano, nem literário, em
atribuir alma às coisas que chamamos inanimadas. Ser uma coisa é ser objecto de
uma atribuição. Pode ser falso dizer que uma árvore sente, que um rio “corre”,
que um poente é magoado ou o mar calmo (azul pelo céu que não tem) é sorridente
(pelo sol que lhe está fora). Mas igual erro é atribuir beleza a qualquer
coisa. Igual erro é atribuir cor, forma, porventura até ser, a qualquer coisa.
Este mar é água salgada. Este poente é começar a faltar a luz do sol nesta
latitude e longitude. Esta criança, que brinca diante de mim, é um amontoado
intelectual de células - mais, é uma relojoaria de movimentos subatómicos,
estranha conglomeração eléctrica de milhões de sistemas solares em miniatura
mínima.
Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais
que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é
o corpo.
Nestas considerações está porventura toda uma filosofia,
para quem pudesse ter a força de tirar conclusões. Não a tenho eu, surgem-me
atentos pensamentos vagos, de possibilidades lógicas, e tudo se me esbate numa
visão de um raio de sol dourando estrume como palha escura humidamente
amachucada, no chão quase negro ao pé de um muro de pedregulhos.
Assim sou. Quando quero pensar, vejo. Quando quero descer na
minha alma, fico de repente parado, esquecido, no começo do espiral da escada
profunda, vendo pela janela do andar alto o sol que molha de despedida fulva o
aglomerado difuso dos telhados.
Bernardo Soares - Livro do Desassossego